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Os Protetores 1x05: Rosa é a Cor Mais Quente




OS
PROTETORES



série de
FELIPE LIMA BORGES


 Temporada 1, Episódio 05
“Rosa é a Cor Mais Quente”


escrito por
FELIPE LIMA BORGES





O.S.: Indica que o personagem falando está no cenário, mas fora do alcance da câmera.
V.O.: Indica que o personagem falando não está no cenário, soando como uma narração.
FLASHBACK: Ação que ocorre no passado.
FLASHFORWARD: Ação que ocorre no futuro.



Tela preta.
Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da Criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seu semelhante.
Albert Schweitzer

CENA 1: EXT. VILA - AMANHECER
Tela preta.
Latidos distantes. Som de um moinho de vento girando.
FADE IN:
Os primeiros raios de luz surgem por detrás das casas de madeira da Vila Boa Esperança, uma pequena comunidade situada entre um rio e uma estrada de terra. Então, um canto de galo ao longe...

CENA 2: EXT. CASA DE AGUINALDO – QUINTAL – AMANHECER
O vento da manhã sopra suave sobre as folhas das árvores e o moinho de vento gira constantemente.
Plano geral: vemos que a porta da casa se abre e uma moça sai de lá. Ela caminha pelo quintal até um tanque de pedra.
Agora com uma câmera na cena, vemos ela escovar seus dentes de frente para um pequeno espelho encaixado atrás da torneira. É ÍSIS (20 anos, cabelos ondulados, olhos claros e sempre de vestido).
Ísis então caminha na direção do rio. Ao chegar e molhar seus pés, ela se agacha e joga água no rosto. Então vê seu reflexo.
ÍSIS
Força, Ísis! Logo você vai conseguir.
CORTA PARA:
CENA 3: CONT. – INT. MERCADINHO – MANHÃ
Segurando uma caneca com café, Ísis entra no mercadinho, que fica na varanda da casa, de frente para a estrada de terra. Ali já estão seu pai AGUINALDO (50 anos) e sua prima ÂNGELA (20 anos) organizando as mercadorias.
ÍSIS
Bom dia.
AGUINALDO
Bom dia, minha filha. Dormiu bem?
ÍSIS
Muito bem, meu pai.
ÂNGELA
Tão bem que é a última que chega.
Ísis olha para Ângela com cinismo.
ÍSIS
Bom dia, priminha.
AGUINALDO
Termina de merendar, minha filha, e vem já ajudar. Tem muito serviço pra gente fazer. Essa festa tem que estar à altura da pescaria.
Ísis encosta em uma prateleira de madeira enquanto bebe o café. Ângela se aproxima.
ÂNGELA
E então, Ísis, aproveitou o tempo na cama pra pensar no que eu te falei?
ÍSIS
Não sei do que você tá falando.
Ângela puxa Ísis para longe de Aguinaldo.
ÂNGELA
O Tárcio, Ísis! O moço só tá esperando eu dar sua resposta pra vir falar com seu pai. E então, você aceita?
ÍSIS
Ah, faça-me o favor, Ângela! Não quero saber de homem daqui não! Eu quero é homem da cidade, não essas mulas que tem aqui.
ÂNGELA
Fica nessa de escolher, viu, que você vai é ficar pra titia!
ÍSIS
Ângela. Olha pra mim. Até parece, né?
ÂNGELA
O Tárcio é um bom moço. É trabalhador, educado, a gente conhece ele desde pequenas. Você nem estuda, Ísis, não trabalha, não tem nada pra fazer na cidade. Como que vai conhecer um homem de lá?
ÍSIS
E quem disse que eu preciso sair daqui? Olha lá, é assim que vai acontecer.
Ângela vira para onde Ísis está olhando e vê uma caminhonete velha cheia de mercadorias na carroceria vindo pela estrada. Ângela força uma risada de desdém.
ÂNGELA
Quer namorar o seu Jucá? Um velho?
ÍSIS
Seu Jucá? Não sabia que era ele. Mas qualquer coisa da cidade deve ser melhor que de Boa Esperança.
Ângela olha rindo para Ísis, que observa a caminhonete se aproximar.

CENA 4: CONT. – EXT. ENTRADA – MANHÃ
A caminhonete diminui a velocidade e para em frente ao mercadinho de Aguinaldo; desliga. Dois homens descem: JUCÁ (50 anos) e seu filho DUARTE (20 anos e alto).
JUCÁ
Bom dia!
AGUINALDO
Opa, bom dia, seu Jucá! Vamo entrando!

CENA 5: CONT. – INT. MERCADINHO – MANHÃ
Ao ver Duarte, Ísis ergue uma sobrancelha com interesse. Olha para Ângela e vai para trás do balcão. Ângela sai.
CORTA PARA:
CENA 6: INT. CASA DE AGUNALDO – MERCADINHO – MANHÃ – MINUTOS DEPOIS
Ísis mexe em mercadorias atrás do balcão, mas presta mais atenção em Duarte ao lado de Jucá, que conversa com Aguinaldo.
AGUINALDO
Mas homem, esse é o Duarte? Como cresceu seu menino! Que que você anda dando pra ele lá na cidade?
JUCÁ
O caboclo estuda o dia todo, só come porcaria na faculdade. Aí já viu né...
AGUINALDO
Tem que trazer pra cá, temos muito trabalho pra esses braços fortes.
Aguinaldo bate nos braços de Duarte e eles riem. Aguinaldo e Jucá trocam de assunto. Então Duarte nota Ísis trabalhando do outro lado do balcão. Ele se interessa, mas volta a olhar para os homens. Não resistindo, olha novamente para a garota. Aguinaldo percebe.
AGUINALDO
Ahh, com mil perdões, meu amigo!
Aguinaldo corre para o balcão.
AGUINALDO
Essa é Ísis, minha filhota. Cumprimente o rapaz, filha.
Duarte, com as pupilas dilatadas, pega a mão de Ísis.
DUARTE
Olá.
Ísis olha para ele com uma leve provocação no olhar.
ÍSIS
Olá.
JUCÁ
Muito bonita sua menina, Aguinaldo. Como crescem nossas crianças...
Jucá e Aguinaldo continuam a conversar, mas Duarte observa Ísis, que vira de costas para eles. Então ela se abaixa para mexer em caixas no chão e seu vestido se levanta, deixando suas coxas visíveis. O rapaz, ao mesmo tempo nervoso e empolgado, olha com a boca semiaberta.
Perto dali, atrás de uma prateleira e segurando uma vassoura, Ângela nota a situação com desaprovação.
De repente, Ísis se levanta e vira para eles abruptamente, assustando e constrangendo Duarte.
ÍSIS
Por que o senhor não convida o seu Jucá pra festa, pai? Aposto que ele vai aceitar.
AGUINALDO
(contrariado) Bom, claro... Por que não?... O que acha, homem?
JUCÁ
Festa? A tal comemoração da pescaria? Louco é o homem que dispensa um assado de peixe!
Jucá ri alto e seu Aguinaldo sorri tentando ser simpático.
CORTA PARA:
CENA 7: INT. CASA DE AGUINALDO – MERCADINHO – MANHÃ – HORAS DEPOIS
Aguinaldo e Ísis observam a caminhonete se distanciando, a continuar sua viagem. Aguinaldo vira para ela.
AGUINALDO
O que deu em você, Ísis? Que história é essa de convidar gente de fora pra festa?
ÍSIS
Ué, que que tem, meu pai?
AGUINALDO
Ora, que que tem... A festa da pescaria é só pro povo de Boa Esperança, e você sabe disso desde pequena, minha filha.
ÍSIS
Todo ano são as mesmas pessoas, as mesmas cantorias, o mesmo tudo! Ah, qual o problema da gente ter pelo menos umas caras novas, pai?
Aguinaldo respira fundo.
AGUINALDO
Tudo bem... Tudo bem. São só duas pessoas, mesmo...
Ísis abraça Aguinaldo.
ÍSIS
Obrigada por não ficar bravo, papai. Meu lindo.
Ísis beija Aguinaldo e sai.

CENA 8: CONT. – EXT. QUINTAL – MANHÃ
Ísis sai da casa e anda apressada pelo quintal. Ângela se aproxima.
ÂNGELA
Ísis! Ei, Ísis!
Ísis olha para sua prima e continua a andar. Ângela a acompanha.
ÂNGELA
Eu vi o que você fez na taberna. Não tem vergonha na cara não, Ísis?! Se mostrando daquele jeito, feito uma mulher da vida! Sem respeito nenhum!
ÍSIS
Não sei do que você tá falando, Ângela.
Ísis para e olha para Ângela.
ÍSIS
Aliás, você fala muita coisa que eu não faço ideia do que se trata. Devia procurar ser mais clara na sua vida, Ângela.
Ísis volta a caminhar apressada.
ÂNGELA
Ah, vai fingir que aquela empinada quase mostrando o rabo foi sem querer? É daquele jeito que você quer arrumar um namorado, Ísis?! Porque eu vi seu interesse pelo Duarte.
ÍSIS
(dissimulada) Duarte? Nem percebi... Ele é gatinho?
ÂNGELA
(frustrada) Não dá pra crer!
ÍSIS
Também não viu o rapaz, né? Talvez tivesse percebido se parasse de cuidar da vida dos outros feito uma velha fuxiqueira!
Ísis continua mas Ângela para de andar. Na desaprovação de Ângela,
CORTA PARA:
EXT. VILA – NOITE
É festa!
Espalhados ao longo da vila, à margem do rio, os moradores festejam comendo, bebendo e rindo. Rodas de danças, cantorias, fogueiras, crianças correndo e grupos de conversas mais comportados, porém não menos alegres. Alguns cachorros também circulam por ali.
Jucá, já bêbado, discursa para alguns homens, entre eles Aguinaldo. Longe dali, Ísis e Ângela conversam com outros jovens. É quando Ísis percebe Duarte passando em outro canto. Ela fala algo para seus colegas e sai. Ângela olha para ela.
Ísis passa pelas pessoas mantendo o olhar em Duarte. Então vira para trás e, após se certificar de que seu pai continua distraído, segue.
Duarte observa sorridente um grupo de pessoas dançando em volta de uma fogueira quando ouve.
ÍSIS (O.S.)
Oi.
Surpreso, ele vira para trás e dá de cara com Ísis.
DUARTE
Ei... Nem percebi você chegar... Estava distraído...
Ísis mantém o olhar fixo.
DUARTE
É Ísis, certo?...
Provocativa, Ísis não responde, vira as costas e sai. Duarte a observa confuso. Então, sem parar, ela olha para ele uma vez e continua a caminhar em direção à floresta. Duarte entende, olha para a movimentação ao redor e vai atrás dela.

CENA 10: CONT. – EXT. FLORESTA – NOITE
Apesar da escuridão, Ísis corre floresta à dentro enquanto Duarte a persegue.
DUARTE
Espere! Espere! Não consigo ver nada!
Ísis ri alto.
ÍSIS
Não é problema meu! Conheço essa mata tão bem quanto meu corpo!
Então Duarte a enxerga e dispara. Ísis percebe a proximidade do rapaz e grita rindo. Ele a alcança, a agarra por trás e a encosta em uma árvore de frente para si.
DUARTE
Então que tal me dar o mesmo privilégio?
ÍSIS
A mata? É só me acompanhar.
DUARTE
Engraçadinha.
Duarte começa a beijar o pescoço de Ísis.
ÍSIS
Espera, espera!
DUARTE
Que foi?
ÍSIS
Se quiser, vai ter que ser do meu jeito...
Duarte a observa alguns segundos.
DUARTE
Você é... É sua primeira vez?
Ísis, fitando os olhos de Duarte, faz que sim com a cabeça.
DUARTE
Legal! Tá, tudo bem. Como é o seu jeito?
Mantendo os olhos nos dele, Ísis se desvencilha de Duarte. Dá as costas para o rapaz e caminha para a beira do rio banhado pela luz do luar. Sons distantes da festa.
Olhando para o reflexo quase mágico da Lua na água, Ísis leva suas mãos às alças do vestido e os solta. De longe, Duarte observa a garota despir-se e o vestido cair aos seus pés.
Então ela vira para ele, de costas para o rio.
ÍSIS
Eu sou bonita?
Duarte a olha boquiaberto.
DUARTE
Ainda pergunta?... É linda... Deslumbrante.
Ísis permanece parada olhando para Duarte. Ele então começa a se aproximar, cada vez mais depressa. Chegando perto, para, a olha uma vez de cima a baixo e tenta beijá-la; mas ela o impede.
DUARTE
O que é agora?
Ísis segura os braços de Duarte e o deita no chão de barriga para cima, com a cabeça parcialmente na água.
DUARTE
Pra uma iniciante você é bem segura...
Ísis se posiciona por cima dele e leva sua mão ao pescoço do rapaz, como se fosse enforcá-lo. Depois sobe a mesma até o rosto e o apalpa.
ÍSIS
Fala o meu nome.
DUARTE
(com os dedos dela impedindo uma boa dicção) Ísis...
ÍSIS
De novo.
Ísis afasta os dedos dos lábios de Duarte.
DUARTE
Ísis.
Ainda com os dedos no rosto de Duarte, Ísis sorri e se entrega para um beijo. Os dois se agarram à beira do rio.
FUSÃO PARA:
CENA 11: EXT. CASA DE AGUINALDO – MANHÃ
Alguns moradores circulam por ali limpando a bagunça da festa. É quando se ouve.
AGUINALDO (O.S.)
Ísis! Ísis! Onde você tá, menina?!
Aguinaldo aparece segurando um galho com um pedaço de tecido chamuscado pendurado na ponta. Ísis, sentada na margem do rio, acaricia seus cabelos.
AGUINALDO
Ísis!
ÍSIS
Pra que toda essa gritaria logo cedo, meu pai?! Estou bem aqui!
Aguinaldo se aproxima.
AGUINALDO
Ísis! Ísis, o que foi que você fez?! Eu encontrei, Ísis! Fui jogar a sujeira do outro lado da estrada e achei isso aqui! Como você me explica isso aqui, Ísis?!
Aguinaldo balança o tecido para Ísis, que arregala os olhos, pálida.
ÍSIS
Eu... Eu não sei, meu pai! Eu juro... Por que o senhor acha que isso é meu?!
AGUINALDO
Ísis, não brinca comigo, eu conheço todas as suas peças! Isso aqui era seu, eu sei que era, Ísis! Por que estava queimado do outro lado da estrada?!
ÍSIS
(aflita) Eu não sei, meu pai! O que o senhor está querendo dizer com isso?!
AGUINALDO
É isso aqui que eu quero dizer, Ísis!
Aguinaldo balança o galho e Ísis vê, no outro lado do tecido, uma pequena mancha de sangue.
ÍSIS
Eu...
AGUINALDO
Você se deitou com um homem, Ísis?! Me fala antes que eu tenha um treco!
Ísis parece ter uma ideia e se levanta.
ÍSIS
Tá bom, pai, eu tenho que te contar!
Aguinaldo presta atenção.
AGUINALDO
Diga!
ÍSIS
Eu não queria contar porque... foi traumatizante e eu... ele me ameaçou... Mas eu não sabia se o senhor ia acreditar... Ninguém acreditaria--
AGUINALDO
(interrompendo) Quem te ameaçou?! Fale de uma vez, menina!
ÍSIS
Tudo bem, meu pai, tudo bem, eu falo. (respira) Ontem, na festa... Eu estava cansada de tanto dançar e resolvi tomar um ar fresco na beira do rio... E foi quando... quando ele apareceu. Saiu da água, de dentro do rio, meu pai... Vestido como um príncipe... Todo de branco, um chapelão escondendo o rosto... Quando eu vi eu gritei e tentei correr, mas... Ele logo me jogou suas palavras carregadas de veneno e feitiços, e fui obrigada a fazer tudo que ele queria... Ele me seduziu, papai... E eu não pude fazer nada!
Ísis escora no ombro de Aguinaldo e desaba em uma encenação de choro.
ÍSIS
Me desculpa, meu pai... Eu morri de medo de contar pro senhor e o senhor não acreditar na minha palavra... Foi horrível, papai...
AGUINALDO
Você... (pausadamente) Você está me dizendo que foi seduzida pelo... boto?
ÍSIS
Nem fala o nome dele, papai, que eu já me arrepio!
Ísis continua a fingir que chora e Aguinaldo a abraça com um só braço. De longe, Ângela os observa indignada.
AGUINALDO
Calma, minha menina, calma... Você tá segura agora. O pai vai te proteger. Calma...
Aguinaldo encara o rio.
AGUINALDO
Isso não vai ficar assim, minha menina. Fique tranquila que ele vai pagar pelo que fez com você. Calma, minha menina.
No olhar raivoso de Aguinaldo para o rio,
CORTA PARA:
CENA 12: EXT. FLORESTA AMAZÔNICA – RIO – BARCO – DIA
Um barco de alumínio desliza sobre as águas azuis do rio; Aguinaldo é quem o guia. Em uma de suas mãos, uma espingarda.
AGUINALDO
(arrastado) Seu desgraçado, abusador, malassombro dos inferno, quero ver aparecer aqui como o homem que virou pra tirar a honra de minha menina, e me encarar cara a cara, filhote do coisa ruim.
Aguinaldo olha atento à procura de algum sinal do boto.
AGUINALDO
Eu vou te encontrar, caboco safado, e eu vou acabar com você. Aparece, maldição! Onde tá sua honra?! Se teve peito pra subir até minha menina, agora tenha peito e vergonha na cara pra subir e ver minha espingarda cantar na sua fuça!
De repente, um barulho na água perto dali, e Aguinaldo finalmente vê um boto-cor-de-rosa; sorri e levanta.
AGUINALDO
Te peguei.
Aguinaldo pega um cartucho no bolso, coloca na espingarda, mira e atira. Um montão de água explode próximo ao animal, que começa a fugir. Frustrado, Aguinaldo guia o barco atrás do bicho.
AGUINALDO
Isso, corre como uma donzela assustada. Aproveita bem sua última nadada, porque de mim você não se livra. Mexeu com a filha do homem errado, seu estúpido!
Mais próximo do boto que foge, Aguinaldo pega outro cartucho, prepara na espingarda e atira. Erra de novo. O barco se aproxima, o animal salta pela água tentando se salvar... Aguinaldo prepara outro disparo.
AGUINALDO
Cria do inferno! Morre, fela da puta!
Aguinaldo atira. Dessa vez a água que explode está misturada com sangue. Close em Aguinaldo. Em sua satisfação,
CORTA PARA:
CENA 13: EXT. VILA – CASA DE AGUINALDO – DIA
Aguinaldo arrasta o corpo inerte do boto até a margem e o larga.
CORTA PARA:
CENA 14: EXT. VILA – CASA DE AGUINALDO – DIA – HORAS DEPOIS
Contra-plongée: SOFIA e ADRIEL, agachados, olham de forma analítica para a câmera.
SOFIA
(triste) Inia geoffrensis, boto-vermelho, boto-malhado, senhor das águas, maravilha da evolução... ou só boto-cor-de-rosa pro resto do Brasil.
ADRIEL
Ou golfinho com maquiagem.
SOFIA
Não tiraria sua razão, de fato é um golfinho... de água doce. O maior. De sua espécie, o mais inteligente. Há muitos boatos de botos como esse salvando pessoas de afogamentos e as levando em segurança até a margem. Acredito que no meu estágio quase tive a oportunidade de presenciar um caso do tipo.
ADRIEL
Inteligentes... Quão inteligentes?
SOFIA
(olhando para Adriel) O quanto sua capacidade cerebral 40% maior que a nossa permitir.
Adriel levanta uma sobrancelha admirado. Sofia volta a olhar para o boto, ou seja, para a câmera.
SOFIA
Além das ótimas habilidades de locomoção e do biosonar semelhante aos dos golfinhos do mar, esses carinhas também são notáveis pelas emoções que sentem, Adriel. (pequena pausa) Isso só me deixa ainda mais arrasada...
Fim do contra-plongée.
ADRIEL
Não eram eles que foram considerados vulneráveis?
SOFIA
Até algum tempo atrás, sim. Hoje se aceita que não sabemos o suficiente pra concluir o grau de extinção da espécie. Mas não há dúvidas de que eles correm risco.
ADRIEL
E como souberam que esse aqui morreu?
SOFIA
Ele tem um chip. Era monitorado por um grupo de pesquisadores. Em um segundo lá estava o pontinho verde na tela, no outro... nada. Os pesquisadores não queriam arriscar a fúrias dos moradores, então aqui estamos.
ADRIEL
OK. Animal abatido covardemente, corpo localizado e culpado identificado e detido. Tudo bem o resto da polícia vir, mas o que nós dois estamos fazendo nesse fim de mundo, Sofia?
SOFIA
O que leva alguém a cometer tamanha atrocidade com um ser tão amigável, tão dócil, cativante... doce...?
Sofia encara Adriel um tanto atordoada.
SOFIA
Se souber, Adriel, me diga e nós vamos o mais rápido possível levar aquele homem pra pagar pelo que fez.
Adriel expira fazendo que sim com a cabeça.
ADRIEL
OK. (pausa) Um único tiro de espingarda, mas... não parece haver muito mais coisa aqui. Não o suficiente pra iniciarmos a investigação.
SOFIA
Bom, há algum tempo muitos pescadores estavam capturando botos pra usá-los como isca na pesca de piracatinga, que é um peixe desvalorizado aqui, mas bastante exportado pra Colômbia. Era um inferno, o número de botos mortos pra esse fim aumentava a cada dia, até que as provas certas foram reunidas e a pesca da piracatinga foi finalmente proibida.
ADRIEL
Acha que o tal Aguinaldo está vendendo piracatinga pra fora?
SOFIA
É praticamente certo que ainda existem exportadores ilegais por aí, mas esses pescadores não costumavam usar armas de fogo, e sim arpão. Bom, um ponto que podemos ter certeza na investigação é que esse aqui se trata de um machinho.
ADRIEL
Como sabe? Não estou vendo a ferramenta de trabalho dele.
SOFIA
Nem precisaria. Os machos medem em torno de 2 metros e meio, como esse, enquanto as fêmeas pouco mais de 2 metros. Que isso sirva pra alguma coisa... (pausa) Bom, se não há mais nada aqui, é hora de levar embora aquele assassino. O caminho vai ser longo, mas tenho muitas perguntas pra ele. Chame o pessoal do recolhimento por favor, Adriel.
Adriel se levanta e chama, ali perto, alguns homens responsáveis pelo transporte do animal morto. Sofia permanece agachada, observando o boto com pesar. Acaricia a cabeça e o bico do bicho. Com os funcionários se aproximando ela funga o nariz, limpa uma discreta lágrima e se levanta.
CORTA PARA:
CENA 15: CONT. – EXT. ESTRADA – DIA
Sofia e Adriel trazem Aguinaldo, algemado, para o carro parado na estrada. Um veículo de transporte destinado ao boto e outra viatura com PMs ambientais também estão ali. Moradores se ajuntam em volta, observando, confusos, a situação. Ísis se aperta entre a multidão, tentando alcançar seu pai. Ângela a segue.
ÍSIS
Pai! Pai! Meu pai, o que fizeram com o senhor?! Por quê?! Pra onde estão te levando?!
Ísis alcança Aguinaldo.
ÍSIS
Pai, meu pai!
AGUINALDO
Não se preocupe, Ísis. O pai vai resolver isso. Cuida das coisas por aqui enquanto o pai tiver fora.
ÍSIS
Não, não, não podem fazer isso! Vocês não podem fazer isso com o meu pai! Soltem ele!
SOFIA
Ei, mocinha! Licença! Não nos obrigue a te levar junto.
Ângela puxa Ísis.
 ÂNGELA
Ísis, vem! Não podemos fazer nada.
ÍSIS
Me solta, Ângela!
Ísis não se afasta mas não resiste à passagem dos policiais com seu pai. Sofia abre a porta detrás e Adriel coloca Aguinaldo dentro. Sofia e Adriel embarcam.
Sofia gira a chave de ignição. O som característico, mas o carro não liga. Ela gira novamente; nada. Olha para Adriel. Tenta mais uma vez; nenhum sinal.
SOFIA
Era só o que faltava.
ADRIEL
Não me diga que--
SOFIA
(interrompendo) Sim, morreu.
Adriel expira frustrado.
CORTA PARA:
CENA 16: EXT. CASA DE AGUINALDO – ESTRADA – DIA – INSTANTES DEPOIS
Com o capô do carro levantado, Adriel mexe no motor. Sofia permanece na direção e Aguinaldo atrás. Os moradores continuam a observar. Ísis e Ângela por ali.
ADRIEL
Vai, tenta agora!
Sofia tenta dar a partida mais uma vez, mas o carro permanece morto. Adriel vai até ao lado da janela de Sofia.
ADRIEL
Taquiupariu... Estamos ferrados.
SOFIA
O carro tá zerado, manutenção em dia, tanque cheio!... O que a gente faz agora?! Aqui não pega sinal de celular, muito menos de internet!
ADRIEL
(olhando o transporte do boto e a viatura) O boto e os rapazes vão ter que ir e mandar um resgate. E nós... Nós vamos ter que ficar aqui por um tempo.
Sofia e Adriel frustrados. Na satisfação de Aguinaldo,

CORTA PARA:
CORTA PARA:

CENA 17: CONT. – INT. QUARTO DA DESPENSA – DIA
Não é um quarto muito grande. As prateleiras com mercadorias foram arrastadas para as paredes. No centro, uma mesa, e nela as mãos algemadas de Aguinaldo, sentado na cadeira. Adriel está escorado em um canto da parede, e Sofia, de pé e de frente para Aguinaldo, o interroga.
SOFIA
Senhor Aguinaldo, o senhor tem noção do que fez hoje?
AGUINALDO
Sim. Recuperei a honra de minha filha.
SOFIA
Filha...?
AGUINALDO
Ísis. A cunhatã que falou comigo na saída.
SOFIA
Sim, mas... quando o senhor fala que recuperou a honra de sua filha, o que quer dizer exatamente?
AGUINALDO
Oxe... É difícil de entender? É o que os pais fazem quando um homem desonra sua filha. É o que devem fazer.
SOFIA
Senhor Aguinaldo, podemos focar no assunto que estamos tratando? Vamos falar tão somente do crime que o senhor cometeu mais cedo?
AGUINALDO
E onde é que eu tô desviando do assunto?
SOFIA
O que tem a ver sua filha e seus casos amorosos com o que o senhor fez hoje?
AGUINALDO
Tudo!
Sofia, confusa, olha para Adriel, que se limita a um levantar de sobrancelha.
SOFIA
(para Aguinaldo) Explique!
AGUINALDO
O boto, aquele enviado do capeta, seduziu minha filha na festa de ontem à noite e tirou a honra da minha menina covardemente! E eu não me arrependo do que fiz!
SOFIA
Do que o senhor está falando?!
AGUINALDO
Ora, (referenciando Adriel) ele até não tem aparência, mas você é claramente filha da terrinha! Os traços, a cor... Como não sabe do que esses botos de cor rosada são capazes de fazer?!
Sofia bate na mesa.
SOFIA
O senhor está me mangando?! Quer justificar um assassinato com uma crença em uma lenda?! Um mito do folclore?!
AGUINALDO
Eu não quero, eu estou fazendo porque foi o que aconteceu!
SOFIA
Deixa eu adivinhar: o senhor encontrou um preservativo nas coisas de sua filha e, desiludido que sua bebê não é mais sua bebê, questionou a menina, que lhe contou essa historieta. Não, talvez o senhor tenha pego ela no flagra, e foi quando o namorado fugiu pelo rio e ela justificou que estava em estado de transe, e que o rapaz na verdade era o boto em forma de homem.
AGUINALDO
(repulsivo) Não peguei Ísis no ato. Mas ela não mente pra mim, Ísis é uma boa menina, uma ótima filha, o meu orgulho! E eu não acreditei na história dela só pela filha de qualidade que tenho, mas porque sei que essas coisas acontecem nessas matas perdidas da Amazônia. (olhando fixamente em Sofia) Quem não acredita é que está mais vulnerável.
Sofia revira os olhos e sai.
SOFIA
(para Adriel) Preciso tomar um ar.
Sofia bate a porta. Adriel permanece imóvel na parede. Aguinaldo olha para ele.
AGUINALDO
O senhor, posso saber de onde é?
Adriel o encara.
ADRIEL
Eldorado. Dois capítulos depois do do boto.
Aguinaldo vira a cabeça. Adriel sai da parede e assume a posição de Sofia.
ADRIEL
Vi que o senhor é comerciante, toca um mercadinho na frente de casa. Por acaso as vendas andam ruins?
AGUINALDO
Não, estão normais... Com a renda sustento Ísis e eu há muitos anos.
ADRIEL
Talvez o senhor tenha se cansado justamente dessa mesmice de muitos anos e tenha almejado novos ares, outras atividades por fora... sei lá, tipo pesca... piracatingas...
AGUINALDO
Os senhores não querem mesmo acreditar na história do boto, não é? Hum, não queria estar na pele de vocês.
ADRIEL
Não sou eu quem foi pego por cometer um crime inafiançável.
Aguinaldo respira fundo.
ADRIEL
Mas sabe, tem outra coisa. Eu acho que é bastante conveniente nosso carro pifar e o senhor permanecer em sua casa.
Aguinaldo olha para Adriel.
AGUINALDO
Não tenho nada a ver com isso. Sou homem pra assumir o que faço, matei o boto e assumo! Não faço ideia do que pode ter acontecido com o carro dos senhores. E que vantagem eu tenho de ficar aqui? Preso, algemado, na minha própria despensa!
Adriel faz que sim com a cabeça.
CORTA PARA:
CENA 18: CONT. – INT. FORA QUARTO DA DESPENSA – DIA
De pé e estressada, Sofia aperta as têmporas com os dedos. De repente Ísis passa por ali e para subitamente ao ver Sofia.
ÍSIS
Oi.
Sofia olha para Ísis.
SOFIA
Ísis, certo?
ÍSIS
Sim. Onde tá o meu pai? Quero ver ele.
SOFIA
Seu pai está sendo interrogado. Na hora certa você poderá falar com ele.
ÍSIS
Quem está interrogando ele?
SOFIA
Meu parceiro.
ÍSIS
Parceiro? Qual o nome dele?...
SOFA
Sargento.
ÍSIS
E isso lá é nome...
SOFIA
Sargento Adriel. Por que o interesse, mocinha? Posso saber?
ÍSIS
Nada não... Só curiosidade. Com licença.
Ísis começa a sair.
SOFIA
Espere.
Ísis para e olha para Sofia.
SOFIA
Você sabia que o seu pai tá te usando como justificativa pro crime que ele cometeu?
ÍSIS
Então está dizendo a verdade--
SOFIA
(interrompendo) Foi o que aconteceu? Você acredita mesmo nessa história?
ÍSIS
Me desculpe, senhora, mas não acho que o que eu acredito importa. Tudo que me lembro é de um homem de branco saindo das águas e vindo na minha direção. Podia sentir seu desejo de longe. Se essa descrição bate com a história do boto, então foi o que aconteceu.
SOFIA
Mentir pro pai é feio, sabia? Mas mentir pra Justiça tem consequências.
Ísis fica desconcertada.
ÍSIS
Eu tenho que me retirar, ainda estou abalada com tudo que aconteceu. Até mais ver.
Ísis sai e Sofia a encara. A porta da despensa se abre e Adriel sai. Fecha a porta.
SOFIA
Alguma coisa?
ADRIEL
A história dos piracatingas? Não deve ser. Acho que devemos levar em conta a versão dele. A ideia é absurda, mas se ele acredita e agiu motivado por isso, não há do que duvidar.
SOFIA
Sei. (pequena pausa) Antigamente a lenda do boto era muito usada pra justificar gravidezes antes e fora do casamento. É incrível, os anos passam e nada muda. E agora porque uma cunhatã não quis assumir a responsabilidade pelo que fez, um boto teve que perder a vida. É uma pena não podermos levar pai e filha juntos.
Nesse instante um homem chega ali, o MECÂNICO (40 anos).
MECÂNICO
Com licença... Foi daqui que pediram pra ver um motor? Falaram que era na taberna do seu Aguinaldo...
ADRIEL
Sim, fomos nós. Sargento Adriel e sargento Sofia. Polícia Militar Ambiental.
MECÂNICO
Que beleza, maninhos. Só vim passar o recado que vou já ver o carro dos doutores.
SOFIA
Muito obrigada.
ADRIEL
Qualquer coisa é só chamar.
MECÂNICO
Isto, combinado.
O mecânico sai.
CORTA PARA:
CENA 19: CONT. – INT. QUARTO DE ÍSIS – DIA
Ísis entra em seu quarto, que está com a porta aberta. Ângela está ali, sentada.
ÍSIS
O que você tá fazendo aqui?
ÂNGELA
Você vai me contar o que aconteceu. O que realmente aconteceu.
Ísis começa a mexer em suas coisas.
ÍSIS
Você sabe muito bem. Aliás, toda a vila já sabe. Bando de fofoqueiros mal-amados...
ÂNGELA
Ísis, eu até entendo seu pai e os mais velhos acreditarem na lenda do boto, mas você... (fazendo que não com o dedo) Você não me engana não, Ísis.
ÍSIS
Ô Ângela, escuta, você não tem nada pra fazer não?! Tirar o pó das prateleiras, varrer a entrada?!
ÂNGELA
Eu tenho muito o que fazer sim, tenho que cuidar do juízo da minha prima desmiolada que nem o próprio pai dá conta! E nem pode mais!
Ísis se aproxima de Ângela.
ÍSIS
Olha, se você quer saber...
Ísis olha para a porta e de volta para sua prima.
ÍSIS
Eu inventei mesmo a história do boto, porque meu pai me mataria se soubesse que me deitei com um rapaz. Era isso que você queria ouvir? Me deitei com o Duarte, tive minha primeira noite, foi maravilhosa e não mudaria nada do que aconteceu.
ÂNGELA
Como que você pôde, Ísis? Fazer isso antes do casamento--
ÍSIS
(interrompendo) É sério, agora você vai vir com essa conversinha de gente velha? Ninguém merece! Fiz mesmo e já quero repetir, logo logo. E por falar nisso... Você reparou o tal sargento? O parceiro daquela lá? Acho que eu acabei de criar tara por policial...
ÂNGELA
A gente tinha um combinado, Ísis. A gente era amigas... Desde pequenas, sempre sonhamos juntas e imaginávamos, lembra?... A gente imaginava como seria casar com um homem bonito, carinhoso, que nos fizesse felizes... O que eu sinto agora é que eu perdi essa companheira.
ÍSIS
Nossa, que pra baixo você, hein... Quanto drama por causa de um negócio tão simples...
ÂNGELA
Não vale muito pra você, né? Nunca valeu.
ÍSIS
Olha, Ângela, se eu posso te dar um conselho, não fica vivendo de passado não. A vida anda, as coisas mudam, não é assim que sua mãe fala? Eu posso ser desse lugar caipira, mas evoluo como se estivesse na cidade, entendeu? Vem junto, prima, ou você só terá a perder.
Ângela, triste e encarando o nada, faz que sim com a cabeça. Close em Ísis.
CORTA PARA:
CENA 20: EXT. VILA – MARGEM OPOSTA DO RIO – CREPÚSCULO
Sofia e Adriel conversam sentados na grama, um de frente para o outro. Uma pequena fogueira entre eles. Perto dali, um barquinho pelo qual eles vieram. Ao fundo, do outro lado do rio, a vila.
Adriel observa Sofia.
ADRIEL
Você tá bem?
SOFIA
(olhando distante) Tô... (pausa) Só tô pensando nessa menina, a Ísis... Família totalmente desestruturada... Não sei se seria a falta de uma mãe ou... sei lá. (pequena pausa) Eu nunca tive um pai que me ensinasse as coisas, que brincasse comigo, que me protegesse... Algumas vezes chorava escondida depois de ver as outras crianças com seus pais. Mas não posso dizer que isso me fez mal porque tive muita sorte de ter a mãe que tenho. Amorosa, mulher valente, sábia... Não foi só mãe e pai, foi parente, professora, amiga, tudo... (pausa) Mas cada caso é um caso, né?...
Adriel faz que sim.
ADRIEL
Seu pai... O que houve com ele?
SOFIA
Morreu quando eu tinha 1 ano de idade. O bimotor que ele pilotava caiu na floresta. Mata densa, acesso complicado... Acharam os destroços do avião, mas nunca pudemos despedir do corpo dele... Também não quiseram estender as buscas.
ADRIEL
Que absurdo... Eu sinto muito.
SOFIA
Tudo aqui é um absurdo, Adriel... Esse caso, essa gente...
Adriel faz que sim.
SOFIA
Você acredita em Deus?
ADRIEL
Como?...
SOFIA
Deus, Senhor, Criador...
ADRIEL
Sim... apesar de não fazer uma oração há meses.
SOFIA
Então por que a história do boto que se transforma em homem é absurda pra você?
ADRIEL
Desculpe, eu não entendi. Qual a relação das duas coisas?
SOFIA
Um homem que acredita em mares se abrindo pra um povo passar, fornalhas inofensivas a fiéis, milagres acontecendo ao simples mandado de um homem... Nessa mitologia tem muita coisa mais absurda que o boto metamorfo.
ADRIEL
Não se trata do sobrenatural pelo sobrenatural, Sofia. Eu acredito no mundo espiritual sim, mas só em dois lados, o Bem e o Mal. Qualquer coisa além disso é exatamente lenda, mito.
Sofia faz que sim com um sutil desdém e encara o horizonte.
SOFIA
Eu gostava mais do Adriel "caçador de traficantes".
Sofia olha para ele com um leve sorriso, esperando sua reação.
ADRIEL
Você viu meu Twitter? Droga, aquilo era... quando eu era mais novo, estava empolgado com a profissão. Devia ter apagado esse negócio...
Sofia ri.
ADRIEL
Mas sabe, eu também tenho uma versão de Sofia de minha preferência.
SOFIA
É mesmo? E qual seria?
ADRIEL
A menos estressada e mais apaixonada pelo mundo natural à sua volta.
SOFIA
Eu entendo... Esse caso me deixou abalada, é muita frieza em desproporção. Primeiro o Pingo, agora isso...
CORTA PARA:
CENA 21: EXT. CASA DE AGUINALDO – QUINTAL – CREPÚSCULO
Ísis está colocando pedaços de carne crua dentro de um secador telado. Duarte chega ali vindo da estrada.
DUARTE
O que é isso? O que vai fazer com essas carnes?
Ísis olha pra ele chegando e continua seu trabalho.
ÍSIS
Nunca comeu carne seca?
DUARTE
Seca ao sol, sim.
ÍSIS
Pois então devia experimentar carne serenada. O clima está perfeito pra fazer, sem falar nessa lua toda brilhante. Vai ficar ótima.
Duarte se aproxima mais. Ísis continua a colocar os pedaços no secador.
DUARTE
Se tem uma coisa que ficaria ótima agora à luz do luar é o seu corpo nu... E posso afirmar com propriedade.
Duarte pega nos cabelos de Ísis.
ÍSIS
Ahn...
Ísis vira para ele, de modo que seus cabelos saiam da mão dele.
ÍSIS
Você... precisa de alguma coisa, Duarte?
DUARTE
Sim, preciso de outra noite como aquela, à beira do rio. (passando o dedo suavemente no rosto dela) Meu amor...
ÍSIS
(se afastando) Quê?! Que foi que você disse?!
DUARTE
“Amor”? Por quê? Pensei que você--
ÍSIS
(interrompendo) Que eu o quê?! Que eu fosse sua namorada?! Só porque transamos?!
DUARTE
Não foi só uma transa, Ísis, foi a sua primeira vez. Eu sou seu primeiro homem.
ÍSIS
E?! Pensou que por isso eu estaria caidinha aos seus pés, louca de paixão?! Que a ingenuazinha do interior estaria derretida por finalmente ter encontrado o príncipe encantado vindo da cidade tão distante?!
DUARTE
Abaixa a voz.
ÍSIS
Meu querido, eu estou na minha casa, você é a visita aqui. Se está incomodado vaza, some, desaparece! Não tenho nada com você, e que nossa senhora me livre de ter!
Ísis volta a mexer nas carnes. Duarte a encara, frustrado e revoltado. Ísis para mais uma vez.
ÍSIS
Olha, o que tivemos foi bom. De verdade. Mas não venha com essa conversa me subestimando, como se eu fosse qualquer uma, porque eu não sou e nunca serei, entendeu? Agora cada um pega suas coisas e toma seu rumo. É fácil.
DUARTE
Eu fiz um favor pra você, Ísis! Você me deve isso!
ÍSIS
O de hoje cedo? Fez mesmo, está sendo muito útil pra mim, mas nunca te prometi nada em troca. Não tenho culpa se criou expectativas na sua cabeça.
Ísis se aproxima de Duarte.
ÍSIS
Não fica com essa cara de bravo, não. (passando a mão do abdômen ao peito de Duarte) Você vai encontrar outras cunhatãs, outras virgens pra tentar iludir. Talvez com elas funcione.
Ísis pega a mão de Duarte e segura seu dedo indicador. Então o lambe sensualmente.
ÍSIS
Já que você foi o meu primeiro, considere isso como seu prêmio.
Ísis, olhando para Duarte de baixo para cima, sorri maldosamente. Ela se diverte com o rapaz.
DUARTE
Desgraçada! Isso não vai ficar assim.
Duarte sai irritado. Ísis fica parada olhando para ele com o mesmo sorriso. Enquanto se afasta ele olha novamente para trás.
DUARTE
Você vai me pagar!
E sai. No sorriso divertido de Ísis,
CORTA PARA:
CENA 22: EXT. VILA – MARGEM OPOSTA DO RIO – CREPÚSCULO
Sofia e Adriel continuam sentados ao redor da fogueira. De repente, um grito masculino vindo da vila. Os dois se assustam.
SOFIA
Que isso?
ADRIEL
Veio da vila.
Nesse instante, sons de pessoas falando alto.
SOFIA
Bora ver.
Eles levantam apressados.

CENA 23: EXT. CASA DE AGUINALDO – QUINTAL – CREPÚSCULO
Sofia e Adriel atravessam correndo o quintal onde Ísis e Duarte estavam anteriormente. Dali veem o carro de Sofia, na estradinha, com o capô levantado e, próximo, o mecânico com uma mão na cabeça e ajoelhado, tentando se levantar. Moradores em volta, alguns tentando ajudá-lo.

CENA 24: CONT. – EXT. ESTRADA – CREPÚSCULO
Sofia e Adriel chegam na movimentação.
ADRIEL
Ei! O que houve?! O que aconteceu aqui?
MORADORA
Ele foi atacado!
O mecânico não tira a mão da região atingida na cabeça.
SOFIA
(para o mecânico) Isso é verdade?
MECÂNICO
É sim.
SOFIA
Quem fez isso?
MECÂNICO
Eu não sei, eu estava aí mexendo no carro dos senhores... e de repente a pancada! Ai... A vista embaçou toda e tive que me apoiar no carro pra não desabar. Depois veio a dor... de uma vez! Não consegui segurar o grito.
MORADORA
Mas quem daqui faria uma coisa dessa com o senhor?!...
MECÂNICO
Eu sei lá, minha senhora, mas sendo quem for, tentou me apagar. Só não contava com esse coco resistente aqui.
ADRIEL
Tem algum médico ou enfermeiro na vila?
MORADORA
Tem lá naquela casa verde.
ADRIEL
Então levem ele pra lá.
Sofia e Adriel se entreolham preocupados.
CORTA PARA:
CENA 25: CONT. – INT. QUARTO DA DESPENSA – NOITE
A porta se abre e Sofia e Adriel entram. Aguinaldo, ainda sentado mas já sem algema, levanta a cabeça. Na sua mesa um copo de barro com água. Fecham a porta. Se aproximam.
AGUINALDO
Até quando vão me deixar aqui?... Não sou embalagem não, sou gente.
SOFIA
O senhor vai permanecer aqui até que alguém chegue de volta pra nos buscar. Ou até que o mecânico consiga fazer seu trabalho sem ser interrompido.
AGUINALDO
A senhora está sugerindo alguma coisa? Porque eu ouvi um grito de macho aí da frente agora pouco, e se isso tiver alguma coisa a ver, só tô sabendo agora.
Adriel olha para Sofia e vai para uma prateleira mexer nos produtos.
SOFIA
Esquece isso. Quero saber o seguinte: como o senhor sabia qual boto era?
AGUINALDO
Como?
SOFIA
Sim, como. Como o senhor sabia que estava atrás do boto certo? Daquele que supostamente "tirou a honra" de sua filha, e não um outro qualquer.
AGUINALDO
Ora, é fácil. São poucas as vezes que esses bichos andam em bando. E a comemoração da pesca na vila dura três noites. Então com certeza ele estaria por perto, apenas esperando o sol abaixar e a festa recomeçar pra vir de novo com suas artimanhas pra cima das nossas mulheres. Desgraçado...
SOFIA
Finalmente algum sentido nessa sua loucura.
AGUINALDO
Eu aceito como agradecimento poder ir até o banheiro.
SOFIA
O senhor já foi, não tem nem uma hora.
AGUINALDO
Por favor.
SOFIA
Daqui a pouco. Vamos arrumar nossas coisas pra dormir.
AGUINALDO
Vão dormir aqui? Na minha casa?
SOFIA
Não temos escolha.
AGUINALDO
Ora, vão lá pra parada da vila. Já tô achando isso aqui muita folga.
SOFIA
Ir pra lá e deixar o senhor sozinho aqui? Com sua filha podendo te ajudar? Melhor não, seu Aguinaldo.
AGUINALDO
Que sacanagem... Invadem minha casa, me prendem e ainda vão dormir no meu quarto. Na minha cama!
Adriel sai de perto da prateleira e se aproxima de Sofia.
ADRIEL
Não se preocupe, senhor. Não vamos nem entrar no seu quarto.
AGUINALDO
Ora... Fora o de Ísis o meu é o único quarto da casa.
ADRIEL
Fique tranquilo. Vamos forrar uns panos no seu mercadinho aí na varanda. A brisa da madrugada, as estrelas... Será ótimo.
CORTA PARA:
CENA 26: CONT. – INT. MERCADINHO – NOITE
Em um canto do mercadinho, Adriel está meio sentado meio deitado em um amontoado de panos. Ao lado dele, Sofia arruma os seus.
SOFIA
Isso deve ser suficiente pra proteger da friagem.
Sofia termina e deita.
ADRIEL
Acha que é seguro aqui?
SOFIA
Do que você tem medo? Insetos? Melhor se cobrir, então.
ADRIEL
Houve um ataque hoje, Sofia. Primeiro o carro morre e agora tentam apagar o mecânico que tentava consertar.
SOFIA
Então não precisamos nos preocupar. Não essa noite. Alguém claramente não quer que a gente vá embora, mas não parece estar atentando contra nós.
ADRIEL
Tem razão.
SOFIA
Bom, agora vou tentar descansar dessa loucura toda. Boa noite, Adriel.
ADRIEL
Boa noite, Sofia.
Sofia se cobre e vira para o outro lado. Adriel permanece pensativo por alguns segundos; então finalmente deita.
Na passagem do mercadinho para o restante da casa, em meio à penumbra, Ísis observa os dois dormindo. Contempla por alguns segundos e sai.
FUSÃO PARA:
CENA 27: CONT. – EXT. QUINTAL – AMANHECER
Assim como no início do episódio, vemos o quintal e a casa de Aguinaldo por um plano geral. O vento suave da manhã, o moinho de vento girando...
Então a porta se abre e uma mulher sai de lá. É Sofia, seguida de Adriel. Eles vão até o tanque de pedra no quintal.
Agora por uma câmera na cena, Sofia e Adriel escovam os dentes. Movimentos repetitivos da escova para lá, movimentos repetitivos da escova para cá, escova-escova de lá, escova-escova de cá...
Eles então olham um para o outro, param de escovar e riem. Se encarando, caem na risada com as bocas cheias de pasta de dente.

CENA 28: EXT. CASA DE AGUINALDO – QUINTAL – AMANHECER – INSTANTES DEPOIS
Sofia e Adriel caminham de volta para a casa ainda descontraídos. É quando Ísis aparece na porta.
ÍSIS
Estão com fome? Eu preparei o desjejum. Já tá na mesa, venham comer. Vem, sargento.
SOFIA
Ahn, na verdade vamos dispensar, Ísis. Toda essa situação do seu pai... Ele não vai gostar de saber que estamos comendo a comida dele. Melhor evitar. Obrigada, mas a gente se vira.
ÍSIS
Imagina, não precisam se acanhar por causa de meu pai. Ele nem mesmo vai saber.
SOFIA
Enganar o pai? (pequena pausa) Me bateu um déjà vu agora.
Ísis fica calada.
SOFIA
Não se preocupe, nós voltamos mais tarde.
Sofia e Adriel desviam a rota e caminham na direção da estradinha. Frustrada, Ísis escora na entrada da porta e os observa.
ÍSIS
(resmungando) Vaca.
CORTA PARA:
CENA 29: MONTAGEM: EXT. VILA – DIA
A trilha sonora sobe. Conforme o sol ascende ao alto da abóboda celeste, a vida pacata na vila prossegue. Alguns moradores fazem suas tarefas cotidianas, como lavar roupa no rio e varrer o chão batido, e outros fazem os preparativos para mais uma noite de festa. Sofia e Adriel orbitam a movimentação. Vemos eles agachados na margem do rio, sentados na sombra de uma árvore, comendo alguma coisa que um morador os oferece...

CENA 30: MONTAGEM: EXT. CASA DE AGUINALDO – ESTRADA – DIA
Continuação da montagem. Vemos eles sentados no teto do carro parado. Ísis, varrendo a entrada do mercadinho, olha para eles, que olham para ela. Ísis rompe a ligação de olhar e foca no seu serviço.

CENA 31: MONTAGEM: CONT. – INT. QUARTO DA DESPENSA – DIA
Continuação da montagem. Sofia e Adriel conversam com Aguinaldo, que come um prato que lhe trouxeram. Depois já vemos Ísis ali, conversando com seu pai que segura as mãos da filha.

CENA 32: MONTAGEM: EXT. VILA – ENTARDECER
Continuação da montagem. Os moradores preparam as mesas, as fogueiras e todo o resto para a comemoração. Sofia e Adriel assistem mantendo uma certa distância da movimentação. Se olham. Escondida em um canto, Ísis os observa. Na verdade ela olha especificamente para Adriel.
ÍSIS
(confiante) É hoje.
FIM DA MONTAGEM.
CORTA PARA:
CENA 33: EXT. VILA – NOITE
Esbanjando alegria, os moradores agitam mais uma noite de comemoração. Muita comida, bebida e doces caseiros em mesas e mãos, além de músicas e danças para todo lado... Tudo como se fosse o primeiro dia de festa.
Um grupo de 4 ou 5 jovens conversam animadamente.
JOVEM 1
Eu quero saber é da cerveja, onde que tá?!
JOVEM 2
Lá com o pai do Tárcio! Tá cego, maninho?
JOVEM 1
Deve ser a abstinência! Pensei que ia beber 3 dias seguidos, mas não! Tinha que aparecer aqueles dois otários e acabar com minha alegria!
JOVEM 2
Que abstinência o quê, ontem não teve festa mas você ficou lá no bar que a gente viu, né não rapaziada?
Os outros concordam.
JOVEM 1
Foi mesmo, mas não é a mesma coisa não. Aqui nós comemora! Com os amigos, as prima...
JOVEM 2
Ihh...
Os outros reagem igualmente.
JOVEM 1
É, ué. A gen/ (vê algo) Alá, olha lá, os babacas! Nariz empinados! Acham que ainda tem o direito de aparecer aqui.
Os outros olham e veem Sofia e Adriel chegando na movimentação.
JOVEM 2
Esquece eles, bora beber que a gente ganha mais! Bora, bora!
JOVEM 1
Excelente ideia, melhor coisa que você falou hoje! Bora que a noite é longa!
Eles saem algazarreando. Sofia e Adriel observam a movimentação.
SOFIA
Vamos com calma, mantendo a discrição. Não somos exatamente bem-vindos aqui.
ADRIEL
Por quê?
SOFIA
Forasteiros na festa deles e responsáveis pela prisão de um dos amigos! Você realmente tá confortável?
Adriel dá de ombros.
SOFIA
OK. Ao menos finja. Não toque em nada, não coma nada. Se quiser beber, eis aí o rio.
ADRIEL
Compreendido.
Adriel avança e pega um copo com bebida; dá alguns goles.
SOFIA
Adriel, o que você tá fazendo?! O que que eu acabei de falar?!
ADRIEL
Sofia, relaxa! Sério! Olha isso tudo. Não é nenhuma rua Augusta mas dá pro gasto.
SOFIA
Então só come, pelo menos! Para de beber!
ADRIEL
Se você soubesse há quanto tempo não tenho uma oportunidade como essa, não diria isso.
Adriel vira o resto da bebida.
SOFIA
Por favor, Adriel, não estrague tudo.
ADRIEL
Estragar o quê? Para de se preocupar com eles, Sofia. Quem são os tiras aqui, hum?! (provocando) Quem que é a policial mais durona da floresta amazônica?! A rainha dos tiros na terra dos tapajós?!
Sofia o encara séria.
SOFIA
Você bebeu antes de virmos?!
ADRIEL
Não sei, não lembro. Talvez uns goles. Nem me olha assim, Sofia. Esse foi provavelmente o dia mais tedioso da minha vida!
SOFIA
O lado bom de você ter bebido é que não vou precisar te dar um tiro por ter me chamado de "tira".
ADRIEL
Ótimo. Agora relaxa e tenta curtir um pouco. Qualquer coisa é só tirar seu distintivo e chutar a bunda do seu problema, do jeitinho que você sabe fazer. Até mais.
Adriel sai e Sofia permanece ali, olhando para ele com desaprovação.
Ângela passa entre as pessoas onde seria o principal local de dança e entra em uma casa por uma entrada onde há um pano no lugar de porta.

CENA 34: CONT. – INT. CASA – HALL DE ENTRADA – NOITE
Ao passar pelo pano Ângela dá de cara com Ísis. Devido à escuridão, não vemos o que Ísis veste.
ÍSIS
(ansiosa) E então, ele veio?!
ÂNGELA
Sim, já tá aí.
ÍSIS
E aquela lá, tá com ele?!
ÂNGELA
Não vi ela.
ÍSIS
Ótimo. Perfeito assim.
ÂNGELA
Que que você tá querendo fazer, Ísis? Vestida desse jeito, essa perguntação pelo rapaz...
ÍSIS
Você é melhor que isso, priminha. Sabe muito bem o que eu quero. E o que eu quero tem nome e sobrenome: sargento Adriel.
ÂNGELA
Você tá doida, menina?! Acha que ele vai te querer, que vai dar atenção pra uma cunhatã daqui?! Ele veio pra cá à serviço! Aliás, serviço esse que é prender o seu pai!
ÍSIS
Estar na festa é parte do serviço dele? Fique e presencie, Ângela. Vamos ver se eu não trago ele pros meus braços.
ÂNGELA
Ísis, você vai é arranjar mais problemas pra você e pro seu pai!
ÍSIS
Aquela lá é namorada dele? Não, né? Então não vai ter problema nenhum. Agora vai lá logo. Fala pra quem tiver cuidando da música colocar alguma coisa mais atual, mais civilizada. Vai lá, vai, vai!
Ângela olha para Ísis com desaprovação e sai, de volta para a festa.

CENA 35: EXT. VILA – NOITE
Ângela caminha entre as pessoas. Perto dali, Sofia passa devagar por uma mesa de doces. Olha com interesse. Pega um e senta em um banco ali perto. Um CACHORRO se aproxima dela.
SOFIA
Oi, amiguinho! Vem cá...
De repente a música principal muda e, mais alto, começa a tocar algum hit do momento. As pessoas, principalmente as mais jovens, se aproximam do lugar principal de dança, na frente da casa onde Ísis está. Animadas com o novo som, elas pulam e dançam com muita energia.
Adriel vira mais um copo de bebida e, muito animado, se aproxima da multidão e começa a dançar junto. Ninguém se importa, todos só querem saber da música. Do banco, segurando o cachorro no colo, Sofia observa Adriel e balança a cabeça negativamente.
Adriel não parece se importar com mais nada. Em leve câmera lenta ele pula, dançando e gritando, assim como todos à sua volta.
Então, no clímax da música e da agitação, o pano da casa se desloca e Ísis sai de lá. Vestido apertado na metade das coxas, rosto maquiado e cabelos volumosos. Em leve câmera lenta ela se aproxima da multidão com um sorriso sensual para Adriel, que, ao vê-la, muda a expressão e a encara admirado. Sofia franze o cenho.
Sem tirar os olhos de Adriel, Ísis caminha gloriosamente entre os outros dançantes. Ele para e apenas a observa se aproximar. Ísis chega perto de Adriel e sorri. Ele a olha de cima a baixo. Ela caminha em volta dele provocativamente e para no lugar onde estava.
Sofia coloca o cachorro no chão, se levanta e observa a cena com mais atenção. Ísis sorri para Adriel e começa a dançar, cada vez mais encostada nele. Adriel então leva suas mãos ao quadril de Ísis, que vira de costas pra ele e se aproxima ainda mais, a ponto de Adriel cheirar seu pescoço. Ísis, de olhos fechados, sorri irradiante. Sofia mal percebe o doce que estava comendo em sua mão.
Então Ísis vira de frente para Adriel e pega sua mão.
ÍSIS
Vem comigo...
Adriel a olha e eles saem pela festa de mãos dadas. No caminho ele pega outro copo com bebida. Passam perto da mesa onde está Sofia, atônita, sem percebê-la e continuam rumo à casa de Aguinaldo. Sofia finalmente se mexe e vai atrás dos dois.

CENA 36: EXT. CASA DE AGUINALDO – QUINTAL – NOITE
Sofia alcança Ísis e Adriel.
SOFIA
Ei! Adriel!
O casal para e a olha. Permanecem de mãos dadas.
SOFIA
Vem, bora! Vamos que tá tarde já.
ADRIEL
Não vai dar, tenho um compromisso agora, Sofia.
ÍSIS
Me desculpe, agora ele tá comigo.
SOFIA
Não me interessa, eu sou a parceira dele e é meu dever cuidar dele. Vem, Adriel. Bora.
ÍSIS
Por que você não nos deixa em paz?
SOFIA
(tentando ignorar Ísis) Porque o que você está fazendo é errado, Adriel! Você tá bêbado! Vem logo comigo! Vamos sair daqui!
Sofia tenta pegar o braço de Adriel mas Ísis entra na frente.
ÍSIS
Qual é o erro que eu e o sargento estamos cometendo? Nós dois somos adultos! Para de ser a policial o tempo todo, vai se divertir também. Ou então vai dormir. Assim descansa e não atrapalha quem quer se divertir.
Sofia a encara impotente. Então Ísis sai puxando Adriel.
ADRIEL
(para Sofia) Desculpe.
Ísis e Adriel entram na casa. Sofia descansa as mãos na cintura e respira exausta. De repente parece recobrar as energias e vai atrás deles novamente.

CENA 37: CONT. – INT. CORREDOR – NOITE
Sofia alcança Ísis e Adriel na porta do quarto de Ísis.
ÍSIS
Ah, você de novo!...
SOFIA
Seguinte, você vai largar ele e dar o fora daqui, agora mesmo!
Ísis e Adriel entram no quarto e param para ouvir Sofia, que fica do lado de fora.
ÍSIS
E por que eu faria isso?
SOFIA
Ele está embriagado! Se fizer o que pretende fazer, será considerado estupro de vulnerável. Artigo 215 do Código Penal.
Ísis ri.
ÍSIS
“Estupro”... (para Adriel) Sargento, você está fazendo alguma coisa que não queira?
ADRIEL
Não.
ÍSIS
Acho que isso encerra tudo.
Ísis fecha a porta na cara de Sofia.
SOFIA
Ei! Ei! Acha que a palavra dele vale alguma coisa agora?!
Sofia bate uma vez na porta mas para. Frustrada, ela sai.
CORTA PARA:
CENA 38: CONT. – EXT. QUINTAL – MANHÃ
Um olho se abre devagar. A pupila contrai com a claridade da manhã. Por um plano mais aberto, vemos que é Sofia. Ela olha no seu entorno e percebe que está deitada na margem do rio.
SOFIA
Maldito cochilo de meia hora...
Sonolenta, Sofia senta e passa a mão em seus cabelos. É quando ela ouve um gemido. Olha para o lado e vê, próximo dali, Aguinaldo estendido no chão, também à beira do rio. Sofia se assusta e levanta abruptamente. Vai correndo até ele.
Aguinaldo está sem as algemas e resmunga enquanto se contorce devagar.
SOFIA
Mas o que... Que isso?! Que você tá fazendo aqui?! Quem te soltou?!
Aguinaldo, porém, não responde e nem reage racionalmente. Sofia então cheira o rosto dele.
SOFIA
Quem te deu bebida?...
AGUINALDO
Cach... Cachorro... Cachorro, me dá o cachorro...
SOFIA
Cachorro? Que cachorro, Aguinaldo?
AGUINALDO
Me dá o cachorro... Me fala qual é o cachorro, cadê o cachorro... Cachorro...
Sofia se levanta. Olha à sua volta. Por ali, alguns moradores limpam a sujeira da festa da noite anterior. Sofia sai.

CENA 39: CONT. – INT. CORREDOR – MANHÃ
Sofia caminha na direção do quarto de Ísis a passos firmes.
SOFIA
(para si) Por favor, resiste! Não abra a porta, me faça esse favor!
Sofia chega e bate na porta do quarto.
SOFIA
Ísis! Abre a porta agora!
Ela espera; nada. Bate de novo.
SOFIA
Adriel! Tá me ouvindo? Abre a porta!
Ninguém responde. Então Sofia gira a maçaneta e a porta se abre. Ela entra.

CENA 40: CONT. – INT. QUARTO DE ÍSIS – MANHÃ
Sofia olha ao redor e para a cama. Somente Adriel está ali, dormindo. Ele está apenas com a calça do dia anterior. Sofia se aproxima e vê uma calcinha presa na cabeça dele.
SOFIA
Adriel! Adriel, acorda! Minha nossa, que que isso?...
Sofia olha com desaprovação e começa então a procurar alguma coisa. Olha no criado-mudo - onde está a arma de Adriel -, nas gavetas desse, nos sapatos no chão, embaixo da cama... Então olha para a calça de Adriel.
SOFIA
Adriel! Acorda, Adriel!
Adriel se mexe e resmunga mas continua a dormir. Sofia revira os olhos e então apalpa os bolsos da calça dele. Em um deles sente alguma coisa e enfia a mão. Tira qualquer coisa de dentro; frustrada, joga fora.
SOFIA
ADRIEL!!!
Adriel senta na cama abruptamente, assustado.
ADRIEL
O quê?! Sofia?!
SOFIA
Finalmente!
ADRIEL
O que você tá fazendo aqui?!
SOFIA
Eu é que deveria te fazer essa pergunta, embora eu já conheça a resposta.
ADRIEL
Que lugar é esse?! Por que tô deitado aqui?! Ai, minha cabeça...
Adriel leva uma mão à fonte e outra aos olhos.
SOFIA
Você não se lembra de nada da noite passada?
Adriel se esforça para lembrar.
ADRIEL
Eu lembro... da festa... Nós fomos à festa deles.
SOFIA
Isso.
ADRIEL
Depois disso é tudo muito escuro, embaçado... Só um cheiro... meio adocicado... e uma voz de mulher... mas não era a sua.
SOFIA
Isso na sua cabeça não te ajuda a lembrar de mais nada?
Confuso, Adriel passa a mão na cabeça e pega a calcinha.
ADRIEL
Por que isso tá aqui? Uma calcinha?!
SOFIA
É de Ísis. Assim como tudo que está vendo aqui. Ontem vocês dançaram e ela te trouxe pro quarto dela. Como a boa parceira que acredito que sou, tentei impedir, mas nem ela e nem você ajudaram muito.
ADRIEL
Céus! Será que eu... que ela e eu...
SOFIA
Nós vemos isso depois, há algo mais urgente agora. Eu encontrei o Aguinaldo solto, sem as algemas, deitado lá fora na beira do rio. Estava bêbado e falando coisas sem sentido.
ADRIEL
Quem teria soltado ele?!
SOFIA
Nós ficamos com a chave da despensa. Você ficou, na verdade. Dado o estado da sua memória, pode muito bem ter sido você, influenciado pela Ísis. Ou pode ter sido ela, e o objetivo de tudo foi te fazer dormir pra roubar a chave e soltar o pai.
ADRIEL
Mas a chave tá aqui...
Adriel enfia as mãos nos bolsos.
SOFIA
Eu já averiguei. Sumiu.
Adriel não encontra e respira fundo.
ADRIEL
Essa desgraçada...
SOFIA
Bom, vou procurar ela. Se veste e lava o rosto que eu vou te esperar.
Sofia sai.
CORTA PARA:
CENA 41: CONT. – INT. MERCADINHO – MANHÃ
Ísis, trabalhando do lado de dentro do balcão, e Ângela, parada do lado de fora, conversam.
ÍSIS
Sim, passamos a noite toda juntos.
ÂNGELA
Mas...?
ÍSIS
"Mas" o quê? Não tem "mas".
Sofia vem do corredor para o mercadinho e, ao ouvir a conversa em andamento, para e escuta escondida.
ÂNGELA
E essa sua cara? Não parece tão alegre e satisfeita como estava depois da primeira vez.
ÍSIS
É tão perceptível assim?
ÂNGELA
Ao menos pra mim, sim. Vamos, Ísis, conta o que aconteceu. Ou o que não aconteceu, né... Você sabe que pode confiar em mim.
ÍSIS
Confiar eu até confio, a barra é aguentar seus sermões.
ÂNGELA
Tá, nada de sermões por hoje. Prometo.
Ísis para de fazer o que estava fazendo.
ÍSIS
Eu e o sargento... Passamos a noite toda juntos, sim, mas foi dormindo!
ÂNGELA
Quê?! Por quê?!
Sofia franze o cenho.
ÍSIS
Quando chegamos no meu quarto começamos com algumas brincadeirinhas... pra entrar no clima. Mas então eu fui trocar de roupa, e nesse meio-tempo o idiota dormiu! Acredita?! Ele estava tão bêbado que caiu de sono, dormiu feito uma pedra!
Ângela ri.
ÍSIS
Não vejo graça alguma.
ÂNGELA
É inusitado, eu esperava que você dissesse qualquer outra coisa.
ÍSIS
Pois é, mas não tem problema não. Eu ainda pego ele.
ÂNGELA
Logo eles vão embora. A essa altura a ajuda da cidade deve estar quase chegando na vila. Além disso o mecânico tá bem e já tá arrumando o carro deles.
ÍSIS
Pois vamos consumar o ato é antes disso, mesmo.
Sofia absorve aquelas palavras e sai.

CENA 42: CONT. – INT. CORREDOR – MANHÃ
Sofia caminha de volta para o quarto de Ísis. Adriel está saindo de lá.
ADRIEL
Sô?
SOFIA
Adriel, acho que eu entendi tudo que tá acontecendo aqui.
ADRIEL
Tudo? Tudo o quê?
SOFIA
Tudo! Escuta só, presta atenção.
O áudio abaixa e Sofia continua a falar com Adriel, que escuta atento.
FUSÃO PARA:
CENA 43: CONT. – EXT. ESTRADA – DIA
O mecânico mexe no motor do carro. Adriel, atrás dele, observa o serviço com os braços cruzados. É quando o mecânico olha para Adriel com um sorriso maroto, e continua seu serviço. Adriel se incomoda e se ajeita. Pigarreia.
ADRIEL
Qual que era o problema do carro?
MECÂNICO
Coisa simples, maninho. A bateria tava zerada.
ADRIEL
Não pode ser. Minha parceira garantiu que o carro estava com tudo em ordem.
MECÂNICO
O doutor que me desculpe, mas tô nessa profissão há anos. Falo e afirmo, maninho, a bateria foi pro pau. Mas não se preocupa não, já tô com a novinha aqui, só alguns ajustes e os senhores vão poder partir.
ADRIEL
Tudo bem.
O mecânico continua a trabalhar, mas olha com aquele sorriso maroto para Adriel mais uma vez.
ADRIEL
Tá bom, o que foi?
MECÂNICO
Todo mundo na vila tá falando, maninho. Um montão de gente viu o senhor saindo de mãos dadas com a filha do seu Aguinaldo ontem. O povo tá tudo criticando que o homem que prendeu o pai tá fazendo os inhecoinheco com a filha, mas eu, doutô... Eu não tenho nada com a vida dos outros. Se o senhores querem, quem sou eu pra falar alguma coisa. Menina Ísis não é mais criança, o povo tem que entender isso. Já se foi--
ADRIEL
(interrompendo) Tá bom, tá bom. Esquece isso. Não aconteceu nada. Pode espalhar por aí. Nada, mesmo.
MECÂNICO
Como assim, doutor?
ADRIEL
Minha... parceira... me garantiu... também.
O mecânico olha Adriel com muita estranheza. Nesse momento Sofia vem da casa.
SOFIA
E então, tudo pronto?
Antes que Adriel ou o mecânico possam responder, Duarte aparece ao fundo correndo, vindo na direção de todos eles.
DUARTE
(gritando) Sargento?! Sofia?!
Adriel franze o cenho e Sofia vira para olhar.
SOFIA
Sim? O que foi, Duarte?
ADRIEL
Vocês se conhecem?
Duarte chega ali.
DUARTE
(para Sofia) Sargento, você vai querer ver isso. Vocês dois! E recomendo que tragam o seu Aguinaldo, pra ele ver quem é a filha que ele tem.
ADRIEL
O que tá acontecendo?
SOFIA
Vamos ver isso, Adriel.
Sofia e Adriel saem seguindo Duarte.
MECÂNICO
Finalmente um agito nessa vila. Vou ficar aqui é nada!
O mecânico corre atrás deles.
CORTA PARA:
CENA 44: INT. VILA – CABANA – DIA
Em cima de uma mesa, um par de mãos segura o cachorro que Sofia encontrou na noite anterior e uma faca apontada para o pescoço do animal. A mão que segura a faca treme, hesita. Então vemos que se trata de Ísis. O que ela está fazendo é dificultoso, há suor em seu rosto e lágrimas brotando dos olhos.
ÍSIS
Aarrrgh!...
Então a mão afrouxa e Ísis afasta a faca do cachorro, que a olha manso e inocente.
ÍSIS
É seu dia de sorte! Vou só te machucar. É...
Ísis vira a faca para o corpo do cão. Tenta arranjar coragem para ferir a pele dele, mas treme e hesita mais uma vez.
ÍSIS
Por que é tão difícil???!!!
De repente um estrondo. A porta da velha cabana se abre abruptamente e Sofia entra com Adriel, ambos apontando os revólveres. Sofia toma a frente. Atrás vem Duarte e o mecânico.
SOFIA
Larga! Larga a faca! Põe no chão! A faca, no chão!
Ísis se assusta e vira para vê-los.
SOFIA
Larga a faca! E se afasta do cachorro! Bora!
ÍSIS
Que isso?... Não...
Atrás de Sofia e Adriel, Duarte assobia e estala os dedos chamando o cachorro, que pula da mesa atrás de Ísis e corre para os braços dele.
SOFIA
Larga essa faca, Ísis! Vamos, antes que você se machuque!
ÍSIS
Vocês não podem fazer isso!... Me apontando armas?!...
SOFIA
Ísis, não me--
ÍSIS
(interrompendo) Tá bom, tá bom!
Ísis se abaixa e joga a faca para eles pelo chão.
ÍSIS
Pronto...
Ainda apontando a arma, Sofia se abaixa e pega a faca com a outra mão.
SOFIA
Adriel, as algemas.
Adriel abaixa sua arma e se aproxima de Ísis com algemas. Olha para ela com certa raiva no olhar. Sofia permanece com a arma em punhos. Adriel põe os braços de Ísis para trás e prende as algemas.
ÍSIS
(chorosa) Não precisava disso--
ADRIEL
(interrompendo) Shh!
Nesse instante chegam correndo Jucá, trazendo Aguinaldo pelo braço, e Ângela.
JUCÁ
Que tá acontecendo?! Meu filho mandou que eu trouxesse seu Aguinaldo o mais rápido possível pra cá... O que é isso?!
ÂNGELA
Ísis! Prima... O que aconteceu aqui?!
Com todos ali e Ísis algemada e segura por Adriel, Sofia abaixa e guarda a arma.
AGUINALDO
Alguém pode me explicar porque tem uma algema nos braços da minha menina?! Por que estavam apontando uma arma pra ela?! Falem já!
SOFIA
Não se preocupe, senhor Aguinaldo. Vamos esclarecer tudo, aqui e agora. Poupe suas energias pra quando estiver decepcionado com sua menina.
Aguinaldo olha para Sofia com raiva e incredulidade.
SOFIA
Tudo começou na primeira noite de festa, quando Ísis e Duarte, sim, esse rapaz aqui, se encontraram e tiveram relações sexuais escondidos.
ÍSIS
É mentira!!!
SOFIA
Ísis, a menos que você queira passar o resto do dia trancada na despensa onde estava seu pai, não me interrompa.
ÍSIS
Mas foi a Ângela, né? Eu sabia que ela ia abrir a boca, inventar história--
SOFIA
(interrompendo) Sua prima não tem nada a ver com isso. (para os outros) Não percebem que o Duarte não protestou? Ele me procurou ontem na festa e me contou sua participação no caso. E logo vocês vão entender o porquê.
Ísis olha rancorosa para Duarte enquanto Jucá olha confuso para o filho.
JUCÁ
Duarte?...
SOFIA
No dia seguinte, de alguma forma Aguinaldo descobriu o que sua filha fez, e foi tirar satisfações com ela. Sabendo das crendices do pai, Ísis tentou se livrar da culpa contando a ele que foi seduzida pela versão humana do boto-cor-de-rosa.
AGUINALDO
Ísis queimou a peça íntima dela, que tava marcada pelo sangue da passagem de moça pra mulher, porque temia que seu pai aqui não acreditasse na palavra dela! Minha filha estava com medo!
SOFIA
O senhor subestima sua filha. E ela se aproveita disso.
Aguinaldo olha para Ísis, levemente intrigado.
MECÂNICO
E depois, o que sucede?
Quase todos ali olham para o mecânico, que fica corado.
MECÂNICO
É que... eu quero saber quem me atacou... quero que chega nessa parte... se é que... eu faço parte...
SOFIA
Faz parte sim. Ísis afetou a muitos pra conseguir o que queria, que no caso era Adriel, o meu parceiro.
Ísis faz que não com a cabeça, tentando negar. Ângela observa, sabendo da verdade. Duarte a olha um tanto magoado.
SOFIA
Apesar de ser o dia seguinte à sua primeira noite, Ísis se encantou por Adriel assim que ele chegou comigo pra averiguarmos o estrago que o pai dela causara por vingança. Mas nossa passagem seria curta, então ela precisava garantir que Adriel ficasse na vila tempo suficiente pra notá-la.
AGUINALDO
E você, que me diz disso, Ísis? É verdade o que ela está dizendo?
Ísis olha de Sofia para seu pai, mas não responde.
SOFIA
Ísis então se aproveitou de Duarte, ainda apaixonado, e deu um jeito de distrair os policiais na estrada enquanto o parceiro trocava a bateria do meu carro.
CORTA PARA:
CENA 45: FLASHBACK: EXT. CASA DE AGUINALDO – ESTRADA – DIA
É o dia do assassinato do boto. Sofia e Adriel estão na beira do rio, mas não os vemos. Vemos Ísis, sorridente e receptiva, se aproximar dos policiais ambientais da viatura e do motorista do veículo de transporte animal. Ela carrega duas bandejas repletas de salgados e doces caseiros. Interessados, os policiais e o motorista se aproximam e comem animados. Reagem positivamente, se entreolhando e conversando, entre eles e com Ísis.
Perto dali, Duarte, astuto, sai de dentro do carro de Sofia, levanta o capô e mexe na bateria. Retira-a e coloca outra no lugar. Olha por cima para garantir que os policiais estão distraídos, fecha o capô e sai.
CORTA PARA:
CENA 46: INT. VILA – CABANA – DIA
MECÂNICO
Eu sabia! Anos nesse ofício, não tinha como errar. Nem tudo tava zerado no carro da senhora, eu avisei... Mas pode continuar o relato.
SOFIA
Você entra na história agora mesmo. Ísis não podia deixar que o nosso amigo aqui consertasse o carro, seu plano iria por água abaixo. No final do dia, como já não podia contar com Duarte, pois o desprezara minutos antes, ela mesma teve que fazer o serviço.
CORTA PARA:
CENA 47: FLASHBACK: EXT. CASA DE AGUINALDO – QUINTAL – CREPÚSCULO
Continuando a cena 21.
DUARTE
Você vai me pagar!
Duarte sai. Ísis sorri divertidamente. Com Duarte já fora dali, Ísis olha de um lado para o outro e corre alguns metros até a orla da floresta. Pega um pedaço de tronco, o esconde atrás de si e caminha discretamente para a estradinha.

CENA 48: FLASHBACK: CONT. – EXT. ESTRADA – CREPÚSCULO
Ísis vê o mecânico, distraído, mexendo no carro. Ela caminha silenciosamente. Dá a volta e se aproxima dele por trás. Então levanta o tronco com as duas mãos e bate com força na cabeça do homem. Ele cai por cima do motor e desaba de joelhos, as mãos tentando se apoiar no carro. Ao ver que ele não desmaiou, Ísis faz que vai desferir outro golpe, mas ele parece querer virar para trás e ela desiste e foge. Nesse momento o mecânico grita alto, o grito que Sofia e Adriel ouvem do outro lado do rio na cena 22.
CORTA PARA:
CENA 49: INT. VILA – CABANA – DIA
MECÂNICO
O quê?! Quem me bateu foi a menina Ísis?!
ÍSIS
Me desculpe, eu não queria te matar, não pense isso!...
O mecânico a olha de queixo caído.
MECÂNICO
Ouvindo essa história da doutora eu tava apostando que seria esse tal de Duarte aqui! Cunhatã, você é maluca!
Aguinaldo apenas observa, absorvendo tudo.
SOFIA
Ísis já havia garantido que Adriel permanecesse na vila, agora era hora do próximo passo. Ela então aproveitou a segunda noite de festa pra seduzi-lo. Bêbado, ele caiu na rede dela facilmente.
ÍSIS
Por livre e espontânea vontade...
ADRIEL
Desculpe, mas em outra ocasião... não rolaria.
Ísis ri com desdém.
AGUINALDO
(para Adriel) Você se deitou com minha filha???!!! Um policial???!!!
ADRIEL
Calma lá, paizão! Não aconteceu nada, abaixa a bola aí.
SOFIA
Exato. Adriel estava bêbado demais pra continuar acordado. Eu mesma ouvi Ísis confidenciar à Ângela hoje de manhã, e ela está aí de prova.
Ângela faz que sim olhando triste para Ísis.
SOFIA
A única coisa de que Ísis pôde se aproveitar da noite ao lado de Adriel foi poder pegar a chave da despensa onde estava Aguinaldo e soltá-lo. Mas não se enganem, ela não queria apenas ver o pai livre. A primeira investida fracassara, e ela precisava de mais tempo com meu parceiro.
AGUINALDO
Ísis me levou algumas cervejas naquela noite, só isso que ela queria.
SOFIA
E o senhor se lembra de algo depois?
AGUINALDO
Não, mas eu bebi além da conta e devo ter tentado fugir. Minha filha não poderia me conter.
SOFIA
Deixa eu adivinhar: ela te contou isso.
O semblante silencioso de Aguinaldo confirma o que Sofia disse.
ADRIEL
(para Sofia) Você é demais.
SOFIA
Um cachorro misteriosamente morto seria um bom motivo pra Adriel e eu permanecermos aqui, mas Ísis não contava com a própria incapacidade de ferir um. Ângela jamais aceitaria e chamar outros amigos só levantaria suspeitas, além de, obviamente, não pegar bem. Então ela embebedou o pai a fim de induzi-lo a matar o cachorro, o mais inocente nessa história, usando sabe-se lá de quais justificativas. Eu mesma encontrei Aguinaldo hoje cedo, jogado na beira do rio, quase inconsciente. Perguntava sem parar pelo cachorro. O excesso de álcool pode ter facilitado ele ser convencido pela filha, mas impediu que o trabalho fosse feito.
Aguinaldo olha para Ísis já raivoso.
ÍSIS
(balbuciando) Desculpa...
ADRIEL
(raivoso; para Aguinaldo) O senhor merece a filha que tem.
Aguinaldo, sem perder o semblante de raiva, fecha os olhos com pesar.
SOFIA
Duarte, que já havia me esclarecido tudo ontem, por acaso viu Ísis entrar há pouco aqui na cabana, com o cachorro e uma faca. Ele correu pra espiar e quando viu ela tentando fazer o que ninguém mais poderia, nos chamou. E aqui estamos nós.
Ísis se acanha com todos os olhares concentrados nela.
JUCÁ
Tudo isso só pra conseguir um homem?! Esse mundo tá virado, mesmo.
MECÂNICO
E eu ainda saí no lucro: um galo na cabeça. (para Adriel) Mas o doutor tá valorizado, hein...
ADRIEL
Nem me fala.
ÂNGELA
(triste) Fazia tempo que minha prima demonstrava curiosidade em saber como é passar a noite com um homem. Infelizmente, é a verdade...
Aguinaldo esconde o rosto nas mãos.
AGUINALDO
Que vergonha...
ÍSIS
(cabisbaixa) Desculpem...
SOFIA
Você vem com a gente. Você e seu pai.
CORTA PARA:
CENA 50: EXT. CASA DE AGUINALDO – ESTRADA/INT. CARRO – ENTARDECER
Sofia coloca Ísis algemada no carro, ao lado de Aguinaldo, e fecha a porta.
ADRIEL
Podia ter me contado que Duarte te procurou.
SOFIA
Podia. E você podia ter me contado que sentiu atração por Ísis.
ADRIEL
Não senti. Foi o álcool, você sabe.
Sofia olha para dentro do carro garantindo que Ísis não está escutando.
SOFIA
Não, Adriel. O álcool não injeta vontades e desejos, ele só liberta aquilo que a gente tenta conter.
Sofia sai e Adriel fica levemente constrangido. Alguns moradores estão em volta. Perto dali, Jucá se aproxima de Duarte.
JUCÁ
(sério) Temos muito o que conversar em casa, rapaz.
Jucá bate nas costas de Duarte e sai. Sofia se aproxima da porta do motorista quando Ângela a aborda.
ÂNGELA
Sofia, só queria te agradecer. Minha prima precisa mesmo de um pouco de juízo, tenho certeza que isso fará bem pra ela.
SOFIA
Imagina, só fiz o meu dever.
ÂNGELA
A senhora acha que... que ela vai ser condenada?
SOFIA
Ísis fez coisas bem ruins, mas a sentença caberá ao juiz decidir.
ÂNGELA
Entendo.
Sofia sorri ao que Ângela corresponde. Essa então se aproxima da janela detrás do carro. Aguinaldo está mais próximo.
ÂNGELA
(para Aguinaldo) Eu vou cuidar das coisas enquanto o senhor tiver fora, tio. Não se preocupe.
Aguinaldo faz que sim. Ísis encara Ângela.
ÂNGELA
(para Ísis) Seja lá pra onde você for, prima, eu vou ir te ver. Assim que eu puder.
Ísis desvia o olhar. Um tanto pesarosa, Ângela se afasta do carro. Sofia e Adriel entram.
ADRIEL
Tem certeza que não quer esperar a ajuda vindo? Aposto que chegam hoje, não passa dessa noite.
SOFIA
Nunca pensei que diria isso sobre um lugar como esse, mas não aguento mais ficar aqui. Se não formos agora, eu enlouqueço.
Do lado de fora, o mecânico se aproxima.
MECÂNICO
Bora lá, doutora. Gira o ferro no buraco e põe a bicha pra piar! Deixa eu ouvir aquele ronco gostoso da máquina!
SOFIA
É pra já.
Sofia gira a chave na ignição e o carro liga. O mecânico ri.
MECÂNICO
Que maravilha!
SOFIA
(para o mecânico) Agora eu te entendo. É como uma sinfonia.
MECÂNICO
É isso aí! Boa viagem pros senhores, cuidado na estrada, luz baixa ao passar veículo, nunca ultrapassem pela direita, e lembrem-se: prudência nunca é demais!
SOFIA
Obrigada. Tchau.
O carro manobra dando meia-volta. Sofia e Adriel acenam para o mecânico, Jucá, Duarte e outros moradores. Com o sol sumindo por detrás das árvores, o carro acelera e parte pela estrada, de volta para casa.
FUSÃO PARA:
CENA 51: INT. PENITENCIÁRIA – DIA
Uma fila organizada de presidiários adentra um dos blocos da penitenciária. Aguinaldo está entre eles.
Um guarda separa as funções para cada grupo de detentos.
GUARDA
(para os homens próximos a Aguinaldo) Vocês vão ficar responsáveis pela limpeza das salas. Vão até aquele armário e peguem vassouras, rodos, esfregões... O sabão também tá lá dentro. Podem ir.
Os homens e Aguinaldo começam a caminhar.
GUARDA
(para Aguinaldo) Você não.
Aguinaldo para. Os outros seguem.
AGUINALDO
(respeitoso) Por que não?
GUARDA
Tenho ordens expressas de supervisionar pessoalmente seu trabalho com os aquários.
AGUINALDO
Aquários?
GUARDA
Você agora é responsável pela limpeza deles. De todos eles. Além de alimentar os peixes na hora correta, sem adiantar e sem atrasar. Todos os dias, sem exceções.
AGUINALDO
Mas não há necessidade de limpar aquários todos os dias.
GUARDA
Você disse alguma coisa?
Aguinaldo franze o cenho.
GUARDA
(sorrindo) Vamos passar bastante tempo juntos, Aguinaldo.
Aguinaldo olha para a lateral da sala, onde estão os aquários. Close em Aguinaldo, close em um aquário.
CORTA PARA:
CENA 52: EXT. RIO NEGRO – FLUTUANTE – DIA
No meio do rio Negro vemos um flutuante, todo de madeira, composto apenas de um deck coberto, porém aberto nos lados, e um cômodo onde funciona uma cantina. As mesas e cadeiras de plásticos estão espalhadas no deck, e há algumas pessoas nelas. Há um guarda-corpo de madeira ao longo de quase todo o perímetro do flutuante, e ao redor desse, alguns barcos atracados.
Em um canto do deck, uma escada desce às águas. Um grupo de aproximadamente 10 crianças de 8 a 10 anos assiste, do topo da escada, a apresentação de uma mulher, que usa colete salva-vidas, alimentando três botos-cor-de-rosa que estão ali; é Ísis. Por ali também estão uma PROFESSORA, um TRATADOR supervisionando e um POLICIAL fardado.
Ísis coloca um peixe na boca de um dos botos.
ÍSIS
Os botos vivem mais ou menos 40 anos. Quando nascem todos são cinzas, e ao longo do tempo vão mudando de cor, até ficarem assim, rosados. Mesmo assim a cor deles continua alterando conforme vão ficando mais velhinhos.
Outro boto emerge o bico, animado. Ísis balança um pedaço de peixe e dá ao animal.
MENINO
Eles moram aqui?
ÍSIS
Eles moram no rio, em todo lugar. Tudo isso aqui é a casa deles. E eles vem aqui visitar a gente porque querem. Ninguém os força, obriga ou os prende. Mas é preciso muito cuidado. Por causa de algumas pessoas más, infelizmente não é todo mundo que pode alimentá-los.
Ísis alimenta outro boto e faz uma carícia no bico.
MENINA
Eles comem muito!
ÍSIS
E isso não é tudo. Depois que eles saírem daqui ainda vão caçar mais peixinhos.
Ísis dá um peixe a outro boto.
ÍSIS
Mas o que vocês acham disso? Eles comendo e a gente aqui, só olhando... Quem quer merendar?
CRIANÇAS
Eeeeuu!!!!
ÍSIS
Ótimo! Então agora acompanhem sua professora, que a merenda já vai ser servida pra vocês. Depois vemos mais os botos.
As crianças seguem a professora na direção das mesas em frente à cantina. Duas pessoas saem de lá e vem na direção da escada: Sofia e Ângela. Ao vê-las, Ísis para.
SOFIA
Trabalho comunitário. Você não pode reclamar.
ÍSIS
Jamais esperaria ver vocês aqui.
ÂNGELA
Eu disse que viria.
Ísis balança a cabeça positiva e levemente e olha para os botos ao redor dela.
SOFIA
(mostrando o distintivo para o policial) Tá tudo bem.
O policial faz que sim e se afasta. Sofia e Ângela se aproximam mais da escada.
SOFIA
(para Ísis) Você se saiu muito bem, Ísis. Parabéns, de verdade. Poderia pensar em se especializar nos botos. Digo, uma profissão de tratadora depois que resolver suas pendências. Tenho certeza que se daria bem.
ÍSIS
(com um leve sorriso) Obrigada.
Sofia sorri.
SOFIA
E então, meninas? Que tal um mergulho?
Sofia olha para Ângela, animada, e para Ísis.
ÍSIS
Eu já tô aqui.

CENA 53: EXT. RIO NEGRO – DIA – MINUTOS DEPOIS
Sofia e Ângela, de coletes salva-vidas, pulam na água e se juntam à Ísis. Logo os botos aparecem. Elas brincam com eles, os tocam com cuidado e riem.
Por fim, em leve câmera lenta vemos um deles saltar na frente de Sofia para abocanhar um peixe em sua mão e ela o olhando com um gigante e apaixonado sorriso. O boto imerge no rio.
Embaixo d'água, os três botos nadam entre si e dois deles saem. O último para, olha na direção da câmera, faz um movimento gracioso e nada de encontro à ela.
CORTA RÁPIDO PARA:
Começam os créditos.
FIM


No próximo episódio:

Quando um homem decide punir os injustos e corruptos de Manaus, Sofia e Adriel correm para salvar a única arma do justiceiro: um rottweiler.

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