Saudações, mancebos amantes
da democracia (assim espero), sejam bem-vindos ao Primeira Impressão desse domingo!
Durante essa semana
aconteceu meu primeiro encontro com o Alto Conselho aqui do meu planeta. Para
quem não lembra, semanas atrás fui convocado às pressas para sair da Terra e
vir para cá a fim de prestar esclarecimentos sobre minha suposta exposição
sobre nosso povo a vocês, mancebos terráqueos. Bem, a primeira audiência não
foi conclusiva, mas meu advogado e eu estamos otimistas. Entre outros pontos,
abordamos o fato de que só tenho levado a vocês entretenimento e conhecimento,
nada além disso, e que nenhum mancebo manifestou qualquer intenção de levar à
frente uma busca por nosso planeta, algo que poderia comprometer a segurança desse
lado da galáxia. Reforçamos que (in)felizmente vocês não tem tecnologia para
sequer nos detectar, e que meus leitores são fieis e leais a mim.
Bom, como eu disse, eles
ainda não chegaram a uma conclusão, mas enquanto a próxima audiência não acontece,
eu leio e relaxo nas banheiras termais de lama dos Campos Cinzentos, lar dos Hong-Dongs,
bichos que, apesar de nojentos, aquecem essas banheiras naturais e me
proporcionam uma tarde sem igual. E é daqui que farei a crítica de hoje, mas
não pensem que o bem-estar causado pelo lugar influenciará em minha opinião
sobre a obra.
A crítica de hoje se trata
de Ouro Blindado, escrita por Selma Dumont e exibida no Ranable Webs. Confira a
sinopse:
“A
história se inicia em 2008 com a briga dos irmãos Carlos e Paulo por causa da
joalheria que Paulo abriu em frente a de Carlos, pra roubar seus clientes e
também pra usufruir um pouco dos lucros. É mostrado também o conflito
das irmãs Paola e Rafaela e Fernanda e Dolly. Em clima de joias e beleza é que
as tramas vão se desenrolando, como a trama de Tamara, esposa de Carlos, mãe de
duas filhas, que tem uma vida estável. Ninguém sabe, mas no passado foi uma
prostituta da casa de Berenice, uma cafetina má, que resolve depois de anos
chantagear sua ex garota. Tamara simplesmente se vê em desespero com essa
situação. Já Rafaela tem inveja de sua irmã Paola. Isso porque Paola sempre
recebeu mais atenção e mais elogio dos pais. Além do mais, Paola teve a festa
de 15 anos do sonhos e Rafaela não. E assim começa a rivalidade que vai perdurar
anos”.
Para quem não sabe, Selma Dumont
é o mesmo Igor Gonçalves, autor de A Inveja Mata, webnovela cuja estreia foi
duramente criticada aqui no programa. Com isso, alguns de vocês podem pensar
que quando eu soube disso fiquei com um pé atrás, mas esse pensamento não
poderia estar mais errado. Quem me acompanha desde o início sabe que o que me
atraiu na cultura escrita da Terra foi a terrivelmente divertida esperança
humana, e não é possível que depois de dezenas de milhares de páginas, papiros
e rolos lidos eu não tenha me “contaminado” um pouco que seja com tal
esperança. Encaro cada obra a ser aberta como um novo desafio, uma nova
possibilidade, e foi assim que iniciei a leitura desse capítulo de estreia.
E não é preciso muitas cenas
de leitura para notar a grande diferença entre a obra anterior e essa, que tem,
ainda que com limitações (falaremos sobre), uma noção de narrativa. A sequência
de abertura começa bem, introduzindo o leitor no espaço físico da joalheria
Ouro Blindado, e ali vemos alguns clientes fazendo suas gordas compras. As
descrições poderiam se estender um pouco mais, mas a cena não faz feio. Logo mais
vemos Rafaela, filha do casal proprietário da joalheria Carlos e Tamara, uma pessoa
que reclama que só queria uma festa de aniversário, assim como toda garota de
sua idade. Eu provavelmente a entenderia muito bem e até concordaria caso
soubesse que idade é essa, e por isso disse “uma pessoa”. Sim, o texto demora a
nos dar essa informação, e sim, a introdução de personagens de todo esse
capítulo é tipicamente deficiente, ou seja, é como na maioria esmagadora das
webnovelas, em que os nomes são apenas tacados no texto, dando a entender que os
autores pensam que seus leitores têm acesso direto às suas imaginações,
eliminando a necessidade de colocar no capítulo informações tão básicas. Só
depois é que descobrimos que se trata do aniversário de 15 anos da menina, e aí
finalmente deixamos de enxergar um letreiro “RAFAELA” andando pela casa e pela
escola para enxergar uma figura genérica de uma garota de 15 anos.
Os pais de Rafaela, Carlos e
Tamara, pensam em agradar a filha e até cogitam presenteá-la com uma joia, já
que têm tantas para vender. Mas ele lembra a esposa que estão em crise, e uma
joia seria um presente inviável naquele momento. Essa constatação de Carlos acontece
depois de sabermos que eles estão passando por dificuldades financeiras, e esse
é o tipo de cuidado que não vimos em A Inveja Mata, e nem em boa parte das
webnovelas, que é a coerência. Alguns leitores mais críticos podem achar
que isso é o básico em uma história, mas peguem uma centena de webnovelas e verifiquem
em quantas a coerência não é respeitada; em dezenas. Só nesse ponto já se sente
a clara evolução da novela anterior para essa, pois outro autor, movido mais pela
emoção em ter uma história publicada do que pela razão em se escrever uma boa
história, não hesitaria em fazer os personagens pegarem uma das joias de sua
loja e dar à filha; para ele não haveria impeditivo algum nesse ato.
Bom, eu teria ficado bastante
contente se a coerência permanecesse em todo o capítulo, mas infelizmente isso
não acontece, e o maior expoente dessa problemática é a joalheria que está
sendo montada do outro lado da rua, em frente à Ouro Blindado. Para que entendam
o que fica entendido ao longo das cenas, vou explicar: o irmão de Carlos,
Paulo, está abrindo uma joalheria propositalmente de frente para a do irmão. Ao
longo do tempo, Carlos, obviamente, vê que ali do outro lado está sendo montada
uma loja, mas não faz ideia de qual o ramo da mesma, nem de quem é o
proprietário. Somente no DIA DA INAUGURAÇÃO é que ele descobre que se trata de
uma joalheria, e que ela é de seu próprio irmão. Acham que é só isso? Não. Parece
que Paulo tem algum dom de diminuir o interesse das pessoas em seus negócios quando
lhe convém, pois sua esposa Margareth também só fica sabendo que ele montará
uma joalharia dias antes da inauguração. Mancebos, nunca fui um cidadão
terráqueo ativo nas atividades comuns, mas onde é que ficam a negociação, a
transação financeira, o levantamento de todo o necessário para reforma e
montagem...? É sério que Paulo passou longe dos olhos da esposa, com quem mora,
e do irmão, do outro lado da rua, durante todo esse tempo e fazendo todas essas
coisas?!
Ainda quanto a personagens, gostaria
de abordar o maior potencial e o menor, aliás, esse com grande potencial para ser
um estrago literário. O maior é a rivalidade entre as irmãs Carlota e Margareth.
Essa visita a primeira em sua mansão para tomar “café”, mas não percebe que não
é muito bem-vinda, e ataca a mesa farta sem medo. A troca de farpas é constante
e a acidez é sentida no ar, e se nos capítulos posteriores essa relação
continuar a ser explorada dessa forma, bem escrita, certamente renderá um ótimo
núcleo cômico para todo o andamento da novela. O menor potencial trata-se da garota
Dolly, filha de Paulo e Margareth, e que se fosse retirada desse capítulo não só
não faria falta como faria bem à trama. E o problema não é seu racismo
abominável, mas a forma como ela é escrita destilando o veneno do preconceito.
É em uma aula de monólogo bobo, extremamente expositivo e completamente
inverossímil que a garota diz com todas as letras o quanto odeia pessoas negras.
E, sozinha ali no corredor de sua casa, ainda faz piadinha... Me parece mais
uma tentativa desesperada de inserir uma causa social na história do que de tratar
o assunto com seriedade e, acima de tudo, organicidade. Sim, queremos histórias
sobre isso, mas que seja de forma orgânica, ou seja, que o leitor não sinta que
aquilo está sendo espremido ali entre as cenas só para cumprir uma lista de
temas sociais.
As adolescentes dessa história
são muito chatas, especialmente Rafaela, que é simplesmente insuportável.
Mas não vejo isso como defeito da estreia, mancebos humanos de fato costumam se
comportar dessa forma, sentindo raiva e ódio de coisas banais, e acho que aqui
está mais para um retrato fiel dessa fase da vida. Mas outra característica da
adolescência é a mudança constante na personalidade, nos gostos e nas opiniões.
Por essa razão é que é difícil entender como é que Rafaela, 2 anos depois e no
alto de seus 17 anos, já com idade de entrar no Ensino Superior, ainda sente
mágoa por não ter tido uma festa de 15 anos, e que isso é potencializado com a
aproximação da festa equivalente da irmã mais nova. Como é que ela não mudou nada
durante a fase mais dinâmica da vida humana?!
No geral não dá para
identificar muito bem nesse capítulo qual é a história principal da novela, pois
não se trata de um capítulo redondinho. A rivalidade de irmãos e de joalherias,
que chega a lembrar a de famílias e restaurantes em filmes e novelas e que pensei
que seria o mote central aqui, começa, se desenvolve rapidamente e se encerra
antes do final do capítulo. Os outros núcleos são claramente paralelos, sobrando
apenas Rafaela, cujo dilema de ressentimento por não ter um aniversário e uma
vida exatamente como queria não tem relação direta com a Ouro Blindado. O que
se vê é um desalinhamento entre título, temas e núcleos, cabendo aos capítulos
seguintes ajustar isso e deixar mais claro ao público que história ele acompanhará
e quais a orbitará.
Em comparação à A Inveja Mata,
Ouro Blindado apresenta uma noção infinitamente maior e melhor de
cinematografia, e, por consequência, de roteiro. Não é o ideal, está longe, mas
já está, sem sombras de dúvidas, no caminho correto. Dorothy saiu do Kansas
preto-e-branco e agora já percorre a estrada de tijolos amarelos rumo a Oz. O
que me deixa feliz é o nível de evolução, qualquer projeção matemática
apontaria para uma próxima estreia ainda melhor. E talvez seja graças, em parte,
a nós críticos que isso seja possível para os autores. Ainda bem que, diferente
do Ouro da trama, não são as obras blindadas às críticas. E essa, meus amigos...
essa é a graça da democracia.
Novela: Ouro Blindado
Autora: Selma Dumont
Capítulos: 23
Emissora: Ranable Webs
Clique aqui para ler o 1° capítulo
E essa foi a crítica de
hoje. Gostaram, concordam, discordam? Digam nos comentários. O que acham da novela
criticada? Digam tudo nos comentários. Enquanto isso vou relaxar em minha banheira
termal de lama para amanhã trabalhar na preparação da 2° audiência com o Alto
Conselho. Torçam por mim para que eu não perca a liberdade de retornar ao lar
de vocês e continuar com nosso programa semanal, que torcerei para que sejam
eleitos na região de vocês líderes honestos, capazes e comprometidos com o progresso.
E caso tenham perdido o programa da semana passada, basta clicarem aqui para
lê-lo.
Por hoje é isso. Tenham uma
boa semana e até o próximo domingo!
Obrigado pelo seu comentário!